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Arte de resistência

Texto de Néri Pedroso

 

Sou um bicho do cerrado, diz Silvana Macêdo ao falar sobre a própria criação. Nascida em Goiânia (GO), em 1966, a definição sugere um fio condutor para ajudar a entender as múltiplas facetas que constituem essa mulher, esse ser-artista, mulher-mãe, ativista, ser cosmopolítico. Moradora da Ilha de Santa Catarina desde 2004, onde é professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).

Pesquisadora sobre a representação da natureza pela arte e ciência, ao longo de sua trajetória faz pinturas, gravuras, fotografias, instalações e vídeos, alinhados à estética ambiental, a discussões feministas e questões colaborativas, sociais e políticas. A atuação artística iniciada nos anos 1990 desdobra-se desde então, com a adoção de diferentes técnicas, entre novas e antigas tecnologias, entre a tradição e o contemporâneo. No seu conjunto, as obras consubstanciam linguagem, formas, ritmos, tessituras, objetos e imagens que afirmam uma poética traduzível por uma unidade capaz de fazer pensar a vida, o tempo, a arte, a ciência, a natureza, o materno e o feminino, a comunidade, a finitude, o transitório.

O cerrado, a segunda maior cobertura vegetal do Brasil, abrange Goiás, o Estado natal da artista, e engloba um ecossistema também chamado savana brasileira, uma das mais ricas biodiversidades do planeta pelo alto volume de espécies vegetais, aves e animais. O cerrado abarca uma complexidade de processos geológicos e biológicos difíceis de descrever. Composto por várzeas, campos rupestres, gramíneas, brejos, arbustos e árvores esparsas, caules retorcidos e raízes profundas tem fauna e flora particulares e valiosas. Uma coisa em muitas, unidade entrecruzada com contrastes entre diferentes estações climáticas, a paisagem natural do Planalto Central do Brasil está no DNA da artista de modo intrínseco e misterioso. Silvana vem da savana, lugar com mata de formação arbórea aberta, de vegetação herbácea abundante, árvores pequenas e tortuosas, vegetais capazes de se adaptar em ambiente seco. Mudam suas formas para sobreviver e, assim, se configuram ora densas, ora fechadas, frondosas, opacas, ramosas, entrelaçadas.

 

A experiência pessoal diante dessa paisagem contrastante entre seca e chuva é determinante no começo da trajetória nos anos 1990, quando produz pinturas da paisagem do cerrado, mata ciliar e de florestas. Por essa porta de entrada, surge a linguagem artística que estimula a permanente busca de conteúdos teóricos e práticos, de conhecimento por meio de livros, encontros, estudos e viagens planejadas no Brasil e no mundo em lugares com florestas, como a Amazônia, por exemplo.

 

A pesquisa na pintura exige reflexões teóricas sobre a relação do meio ambiente com o discurso científico, um viés que contagia a produção e determina estudos formais de artes visuais, sobretudo no doutorado quando aprofunda as associações entre arte, ciência e natureza. “Meu interesse, conta ela, era investigar como esse conceito da natureza é mediado pelos conceitos científicos sem que a maioria das pessoas percebam o quanto eles estão incorporados no dia a dia.”

 

Com temáticas e interesses diversificados, em 30 anos de atuação no circuito de artes visuais, conduz a experiência subjetiva, a arte, na tangência de questões contemporâneas, históricas e biológicas. Num primeiro momento da carreira, influenciada por tendências estruturalistas e pós-estruturalistas de desconstrução autoral, evita relatos autobiográficos, algo que se modifica no percurso, entende ela à luz de 2018 quando, entre agosto e setembro, expõe Intraduzível no Museu da Imagem e do Som (MIS), em Florianópolis.

 

O que vê quando olha o próprio caminho?

Nada escapa da história pessoal.

As experimentações estéticas carregam associações permanentes entre corpo e memória, corpo e linguagem, corpo e cultura com reflexões complexas entre excesso, privação e plenitude. A representação do corpo aqui entendida como processo de multiplicação, relatividade de significações e sentidos prévios. “O corpo como aquilo que delineia nossa finitude radical nos determina uma forma que reconhecemos no espelho, ou na sombra, que nos faz presente em nossa ausência imediata. A sombra agarra sua presa para recompor a ausência pela imagem: negocia com o invisível através da visualização, representando-o.” (Matesco, 2009)

 

Quer esteja discutindo arte, ciência e natureza ou o feminismo, quer esteja pintando, gravando, fazendo instalações ou videoinstalações, os trabalhos trazem resquícios de representações de si mesma. Com densidade e maestria técnica, é refém da pulsão do ato de criação ou do “coeficiente de arte”, expressão de Marcel Duchamp (1887-1968) para quem a obra se situa entre os limites do que é desejado e a realização, na diferença entre o pretendido e o não intencional, o expresso e o não expresso. A gênese da obra se faz, portanto, a partir de uma rede de intenções, embaraçamentos, arranjos entre jogo e armadilha que só se completam no olhar do outro (o espectador).

 

Nas significações simbólicas instauradas pela artista o corpo sinaliza perda e vazio. Ao representar florestas na fase inaugural da carreira, já está tomada pela postura científica que alcança o conhecimento e a especialização a partir da fragmentação do objeto estudado. De modo igual, nas pinturas, o todo é fracionado. A lente/olho, as tintas e pinceis seguem escolhas a fim de estabelecer transições entre abstração e figuração. No avanço das pesquisas, nos multimeios, dilui fronteiras entre pintura e vídeo, arte e cinema experimental.

 

Em outro âmbito, fora de si mesma, Silvana Macêdo aprecia ações coletivas, atuações colaborativas e coloca a sua produção em sintonia com o artivismo. Adota estratégias simbólicas para amplificar certas causas, faz intervenções urbanas, obras efêmeras, como Paisagem Especulada (2009), escrita monumental realizada na praia do Pântano do Sul junto ao grupo Rosa dos Ventos. Em Imbituba, no Sul de Santa Catarina, cria Baleia-franca (2006-7), videoinstalação e projeto on-line desenvolvido com o programa ambiental Baleia-franca. Aposta em experimentações estéticas, realiza residências, atua com equipes multidisciplinares, de músicos a cientistas, interessados em assuntos de comunidade, tecnologia, meio ambiente.

 

O espírito cooperativo da vivência e do trabalho artístico colaborativo estão impregnados nesta poética que demonstra consciência de comunidade e do coletivo. A convivência, portanto, equivale a matéria-prima de uma produção que articula linguagens artísticas distintas feitas de dicotomias, de nervuras concretas e abstratas, de experiências do particular e do genérico, de configurações que brotam da interação social. Aqui a artista desafia o ego, desmitifica a questão autoral da obra de arte, mina o conceito romântico do autor como rei único e absoluto da criação.

 

Do protesto político e da defesa ambiental, ousa enfrentar os mitos. Um dos mais caros da construção cultural patriarcal, a maternidade, aparece em duas séries fotográficas e uma videoinstalação. Elas integram o projeto de pesquisa intitulado O Poder Materno e a Arte Contemporânea com o qual investiga a representação do maternal na arte contemporânea e sua relação com debates feministas. A abordagem sobre maternalismos contemporâneos, com foco no feminismo, envolve o pós-doutorado iniciado na Glasgow School of Art, Escócia (2014), em andamento no Departamento de Artes Visuais (DAV/Ceart/Udesc), onde atua desde 2006 como professora efetiva.

 

O projeto pessoal de pesquisa e experimentação, o ensino como alicerce profissional, as articulações locais e internacionais, o pensamento em sintonia aos interesses coletivos, o modo de atuação colaborativa, as relações afetivas e cidadãs dão breve noção sobre a conduta e o papel do artista na contemporaneidade em um circuito ou sistema de arte instável que pede o tempo todo uma complexidade de demandas, relações institucionais, enfrentamento permanente de dilemas e fragilidades na cena cultural e no mercado de arte de Santa Catarina, nas sensibilidades e ideias que permeiam esse panorama. Um artista deve ser pesquisado, pensado e legitimado à luz do que produz como obra, como produção de conhecimento e de reflexão, das negociações, referências, parcerias e reconhecimentos institucionais, estratégias e conquistas sedimentadas no percurso.

 

Nessa perspectiva, a conquista do Edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura 2017 assegura um momento especial na relação de Silvana com Florianópolis, lugar em que conduz a carreira artística com um inusual nível de profissionalismo no cenário local. Graças ao prêmio, o projeto Intraduzível concretiza o desejo de reunir parte da produção realizada no Reino Unido, voltada aos multimeios, e praticamente inédita em Santa Catarina. A exposição Intraduzível reúne obras colaborativas criadas entre a artista finlandesa Henna Asikainen, que Silvana conheceu na Inglaterra em 1997 nos estudos na Northumbria University, Newcastle, bem como parcerias com o compositor Frederico Macêdo e o astrofísico iraniano Reza Tavakol. Além de um caráter retrospectivo, com trabalhos criados entre 1997 e 2018, o projeto assume contornos de celebração, pois Henna veio ao Brasil para a apresentação de obras e para comemorar os 20 anos da parceria asikainen&macedo. A curadoria de Juliana Crispe, em montagem extremamente límpida, cria uma atmosfera imersiva, sem deixar de tocar subliminarmente em questões afetivas.

 

Importante ressaltar que o edital ajuda a aproximar países – a Finlândia, a Inglaterra e o Brasil – o Estado de Santa Catarina e instituições, como a Fundação Catarinense de Cultura (FCC), a Udesc e a Arts Council England. Com montagem e caráter conceitual complexos, a mostra, cara pelo uso de tecnologia, só se viabiliza com os recursos do edital do governo de Santa Catarina. Ela se constitui de uma série de fotografias e as videoinstalações lab (2017), ar (2001-3), lua (2005-7), a videoinstalação sonora cooperari (2007) e as instalações trabalho de campo (2018) e segredo (2018).

 

Um dos elementos centrais dessas obras é a noção de tradução, compreendida, segundo a artista, mais como uma dinâmica do que uma influência. Na base e não no tema, conforme situa a curadora. Nesse sentido é curioso notar que Silvana e Henna, sempre entre dois países se comunicam só em inglês e nunca na língua materna. “Nós trabalhamos e conversamos num idioma que não é o nosso. Ao falarmos uma língua estrangeira, sempre temos a sensação de estarmos sendo o que realmente não somos, dá um estranhamento a tentativa permanente de traduzir os sentimentos mais sinceros numa outra linguagem”, diz Silvana.

 

Arte, portanto, que também justapõe idiomas. Entre estranhezas e o atravessamento entre a Finlândia, o Brasil e o Reino Unido, no deslocamento geográfico, na mudança radical entre as paisagens, elas fazem duas residências artísticas, uma no Parque Nacional de Koli, na Finlândia, e a outra no Brasil, na Reserva Ducke, estação de pesquisa do Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas (INPA). Em contato com as investigações de pesquisadores de mudança climática nos hemisférios Norte e Sul, entre 2001 e 2003, criam a instalação ar e anos depois, em 2018, a instalação trabalho de campo, que rememora as jornadas realizadas durante as residências.

 

Rede, teia, véu, captura, armadilha, emaranhado, pintura em movimento. O verde da floresta amazônica no contraste de uma gélida e escultural mata de Koli. O que une paisagens tão distantes? O ar e a ameaça de finitude desses biomas, a representação da natureza pela arte e ciência, a vã tentativa de uma possível tradução através da linguagem artística e científica. Duas artistas diante do mistério, dos paradoxos e sobretudo da beleza entendida como um sistema de absoluto equilíbrio.  

 

Paisagem e corpo

Cabe olhar um pouco para trás. Em Florianópolis, em 2017, Entranhas e Mácula, duas séries de trabalhos apresentadas simultaneamente na Galeria Municipal de Arte Pedro Paulo Vecchietti e no Memorial Meyer Filho impactam o espectador. Em 2018, são montadas nas galerias do Sesc Itajaí e do Sesc Lages. Um conjunto de pinturas a óleo e acrílico sobre tela, outras em nanquim sobre papel, e gravuras em metal tem força pela questão nuclear das metáforas ali contidas. “Das profundezas de si, pulsa a vida e um desejo de autoconhecimento em busca de ressignificar as marcas da sua biografia em seu corpo”, escreve a curadora Juliana Crispe, parceira de longa data da artista.

 

O corpo, um dos grandes temas do pensamento contemporâneo, está no cerne das representações de Entranhas e Mácula, cuja gênese decorre do enfrentamento de uma grave doença. Num processo psicológico de transformação, a artista converte vicissitude em arte. Entre 2014 e 2017, pinta e grava, elabora imagens do coração, baço, rim, osso, órgãos, tecidos células, vísceras.

 

Embora a fragilidade corporal que limita os esforços, com uma paleta alargada, pinta em grandes dimensões. O estado mental diante da doença ajuda a delinear nas telas alusões narrativas e combinações requintadas de tons. Mistura de elementos figurativos e abstrações, as manchas insinuam cavidades e espaços internos inalcançáveis a olho nu. Órgãos vitais, emaranhado de veias, líquidos e sangue, lava incandescente, o corpo marcado por impotência. Em cor e textura, anacrônicas essas representações se confundem com as florestas da fase inaugural da carreira artística. Na experiência da carne, uma poética de perda e vazio.

 

Apesar do sofrimento, o belo se impõe pelo equilíbrio em azuis, vermelho intenso, flores, linhas, luz e sombra que trazem à superfície o imemorial, o desassossego de alguém capaz de escavar na própria carne. Não é à toa que faz as gravuras na técnica da maculatura, justo a que dá profundidade no papel e cuja impressão se faz por nuances de apagamento.

 

Depuração? É o que sugere Maculada, performance que incorpora, segundo relato da artista, um “mobiliário lindíssimo”, emprestado pela Fundação Senhor dos Passos, parceira do projeto. Um leito hospitalar, uma pequena mesa, suporte para soro e vidros, além de outros objetos do acervo do Imperial Hospital de Caridade, servem como recursos cênicos. Parte de Entranhas e Mácula, a performance Maculada acentua o diálogo com questões da medicina e da dialética entre arte e saúde.

 

A acertada curadoria se refina no agrupamento dos trabalhos em duas salas expositivas. Na galeria, a montagem neutraliza os perigos da grandeza das telas na opção de agrupá-las feito um órgão vivo, pulsante. De imediato, o espectador se impacta pela vibração. Em sentido oposto, no Memorial Meyer Filho, uma sala limpa, branca, com as gravuras e a instalação Maculada. De um lado, intensidade, tudo é pulsação; de outro, assepsia. Ousada, de retilínea visão, Crispe enfatiza a escrita das emoções e ajuda a pensar a arte como autoconsciência do sujeito.

 

Cosmopolítica e politemática, Silvana Macêdo assume outros discursos que, em precipitada análise, podem num primeiro momento insinuar distanciamento dos seus interesses primordiais. A questão materna na contemporaneidade mobiliza parte da produção mais recente. A exposição Teia de Afetos, em Florianópolis, reúne em maio de 2018, em O Sítio, a série fotográfica Devoção e a videoinstalação multicanal Sombra de Névoa. O projeto expositivo, também com curadoria de Juliana Crispe, contempla outras ações, uma conversa na noite inaugural, um convite de obra participativa e uma roda de conversa com seis pensadoras.

 

O trabalho Devoção se constitui de fragmentos de sua experiência materna em diálogo com o cotidiano de outras duas amigas, também mães artistas. Ao dar visibilidade ao espaço íntimo da moradias, a série fotográfica revela atos devocionais diários que sugerem uma negociação constante entre o tempo dedicado aos filhos, as necessidades pessoais e profissionais. Os afetos se constituem como elo estruturante dessas narrativas. “A criação artística e a criação de filhos, que se dá no meio de um turbilhão de emoções, tarefas, dores, frustrações, culpas, preocupações, incertezas e desejos”, diz Silvana.

 

A delicada relação entre mãe e filho transcende a vida material. A resiliência é o tema central da videoinstalação Sombra de Névoa que, onírico, traz o momento traumático da perda materna infantil. O título se baseia em um verso do poema Eu, de Florbela Espanca: “(…) Sombra de névoa tênue e esvaecida,/E que o destino amargo,/triste e forte,/Impele brutalmente para a morte!/Alma de luto sempre incompreendida!...”.

 

A artista subverte o espaço pictórico tradicional para discutir – de novo - finitude e transitoriedade. Movimentos subaquáticos compõem o vídeo que embaralha memória e subconsciente em imagens que lembram membranas, galhos retorcidos, raízes, nervuras vegetais, cavidades florestais, entrecruzamentos labirínticos, entranhas. Mais uma vez o corpo e a paisagem desmaterializados.

 

Como se vê, se em Intraduzível “ataca-se” a ciência, em Teia de Afetos a imaginação poética também atravessa a desconstrução cultural de discursos sedimentados. Divergentes e plurais, as obras aproximam arte e feminismo, equivalem ao gesto capaz de retirar a venda dos olhos dos que ainda não conseguem enxergar. Arte como ação política que alcança resultados extraordinários nos encontros de fala sobre os trabalhos, na maioria das vezes com convidadas que conduzem a conversa para fora das instâncias artísticas, neste caso sobre o mito da maternidade.

 

Evento aberto ao público, gratuito, a roda de conversa funciona como uma lente de aumento capaz de trazer à tona emoções e revelar aspectos ocultos nas relações entre homens e mulheres. Com o tema Mitos e Verdades sobre a Experiência Materna Contemporânea, as doulas Gabriela Zanella e Virginia Vianna, as artistas Ana Sabiá, Bruna Mansani e a pesquisadora de dança Ida Mara Freire abrem caminho para o extravasamento e comoção. As artistas Ana e Bruna exibem trabalhos artísticos e partilham a experiência materna, a pesquisadora Ida Mara faz uma performance em que traz a vivência da mulher bailarina e sua negritude, as doulas Gabriela e Virginia abordam a importância da doula no cenário da assistência obstétrica e do seu papel na prevenção da Violência Obstétrica (VO).

 

O que se instaura numa conversa de mulheres? Pura potência, a fala e a escuta de modo inesperado equivalem a uma sessão de terapia provocadora de transbordamento. Lágrimas, vozes embargadas, abraços e cumplicidade, noções de pertencimento pouco vivenciadas. Na partilha de descobertas feitas a partir das obras e do encontro, um momento de alívio, fulgor e mistério. Mais uma vez, porém de um outro modo, a natureza transformada.

 

Encontro entre mulheres, exposição dialogada de ideias, seguida de debate no sentido de estabelecer um pensamento crítico sobre maternidade não é comum em maio, quando se celebra o Dia das Mães. O período serve para agudizar a idealização da imagem materna, o maior emblema do patriarcado, sustentar interesses comerciais e reforçar uma ideologia opressora, papel assumido por um jornalismo dissociado das transformações sociais. O diálogo, os trabalhos, as reflexões e as falas das convidadas e das espectadoras, uma grande maioria com crianças e bebês, acabam por abrir comportas inimagináveis. As camadas discursivas criam de modo espontâneo contrapontos, operam num viés analítico e desconstrutivo. Portanto, uma ação ético-política que pensa a maternidade de um modo bem distante do apregoado “padecer num paraíso”. Caminho de realizações e alegrias, constituir-se como mãe obriga o enfrentamento de um enorme desafio cheio de problemas, dores, renúncia e solidão com homens ausentes e despreparados.

 

A artista também convida a construir uma obra participativa que fica em processo de construção permanente numa televisão posicionada dentro do espaço expositivo. Antes e durante a exposição, interessados enviam fotos do rosto de sua mãe para expor na TV. Dobras e mais dobras de histórias entrecruzadas no tempo e na geografia, uma outra conversa carregada de subjetividades e descobertas.

 

Mais do que um bicho do cerrado, poderia se dizer de Silvana Macêdo uma vegetação do cerrado – puro enigma. Na partilha do sensível, ou seja, com “formas de inscrição do sentido da comunidade” (Rancière, 2005), também é transgressiva, pois se põe a serviço do desmonte das ilusões e remete ao corpo-traço, conceito de Roland Barthes. “O traço, por leve ou incerto que seja, remete sempre a uma força, a uma direção; é um energon, um trabalho, que oferece à leitura o que ficou sua pulsão, de seus desgaste (Barthes, 1990).

 

Embora as condensações ou deslocamentos ao longo dos anos, tanto criativos como geográficos, há um continuum corporal e feminista nos trabalhos que compõem essa trajetória investigadora dos limites da visualidade e da representação. Arte provocadora, pede tempo e atenção. Corajosa e resiliente, como algumas plantas do cerrado, não se deixa sucumbir quando gravemente doente, adapta-se e se salva com e pela arte. Gesto ou objeto, Silvana Macêdo dessacraliza o corpo e a natureza, cria organismos vivos, estruturas pulsantes com força para provocar fissuras no pensamento, converte discursos, estabelece densidades em amplo espectro, garante vitalidade ao circuito de arte de Santa Catarina.

 

 

Bibliografia

BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios sobre fotografia, cinema, pintura, teatro e música. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1990, p. 154.

MATESCO, Viviane. Corpo, imagem e representação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 50-51

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO experimental org.; Ed. 34, 2005, p 18.

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